Saiu de casa, sem rumo, sem destino. São 7:10 da manhã e o orvalho matinal traz o cheiro da terra que banhou. É aquele momento do dia em que os pássaros silenciam o seu canto e o sol perde a timidez. É aquele momento em que a brisa pára de soprar e o mundo se suspende para observar Vida.
É o momento em que ela sai, sem rumo, sem destino. Ela e os seus sapatos de corrida, que consigo carregam os pensamentos.
Dá por si parada a beira do penhasco, atrás dela a estrada, á frente o oceano tumultuoso que bate na rocha negra. Aqui a brisa já sopra em vento, revolvendo-lhe cabelo que traz preso. Não dá por isso, enceta uma marcha rápida que logo se converte em corrida táctil.
Conforme a estrada passa por debaixo das solas dos sapatos os seus pensamentos flúem, inicialmente sem qualquer nexo ou causalidade, depois voam para si, e para ele.
Um sorriso assoma-lhe os lábios quando recorda o primeiro beijo, dado em rompante entre a manete das mudanças e o travão de mão. Com o embaraço dos casacos húmidos da morrinha nocturna.
Ela recorda-se da primeira vez que o viu, concentrado no que estava a fazer. Não deu por ela, mas ela reparou nele. Ele salientava-se naquele ambiente repassado e impuro, alto, sorridente, brilhante, com um frescor típico de quem gosta da rua, do ar livre. Mas afastou daí o pensamento e seguiu o seu caminho de regras e correcções, como sempre fazia.
O tempo correu e ficaria a conhece-lo melhor, entenderia o seu coração, a sua vivência e experiência. Dali germinou a amizade natural entre dois entes que valorizam os pequenos grandes momentos.
Imersa nestas recordações acrescenta ritmo ao passo e levanta a cabeça para sentir o vento fresco que lhe arrefece o corpo já suado do esforço físico. A sua compleição esguia e atlética lembra a gazela da savana, que suspende o corpo a cada impulso da passada. Mas nesta manhã, contudo, são as suas reflexões que a movimentam, e fazem-no no erotismo da mulher que foi tocada, sentida nas mãos de um homem.
Ela nunca pensou que ele reparasse nela como mulher, que se interessasse por ela para além de uma boa colega, de uma boa amiga.
Ele disse-lhe quando a beijou que nunca considerou que algum dia seria dele, que era demasiado bom para ser verdade. Ele havia-a desejado para si desde o primeiro momento, mesmo quando não simpatizou com ela.
Nessa noite, depois dos beijos desembaraçados dos casacos que ficaram caídos no chão do carro, ele envia-lhe um sms a dizer que era um sonho tornado realidade. Ela ficara feliz com isso, com o sms, com os beijos embaraçados e desembaraçados dos casacos molhados da chuva.
Das últimas mensagens que haviam sido reciprocadas em desafio das carecias afectivas que ameaçavam a racionalidade dos dois seres. Do desdém enganador de quem deseja pela atracção que suporta, ao ouvido amigo de quem acompanha a desdita ventura de outrem.
Foi necessário rebentarem de privação para que os dois corpos necessitados se consumissem no fogo do enamoramento. Não pararam para pensar em mais nada, apenas na necessidade emergente, deixando a espontaneidade comandar, pela primeira vez, a irracionalidade sã que estava a ocorrer. E assim ficaram naquela hora da noite, os dois abraçados e conhecer com os lábios cada centímetro dos seus rostos, a tocar pele e derreter o olhar que afundavam quando o tempo parou para lhes dar passagem ao sentir.
O sol das 9 horas principia a amornar e a camisola de alças já transparece colada á pele. A respiração ofega e o cabelo cola-se-lhe à testa, mas ela ri-se jovial. Não repara nos transeuntes que a vêem passar a correr, numa corrida decidida e ritmada. O pés batem no chão com o ímpeto de quem deseja mais da vida do que simplesmente viver. E este novo romance inesperado trouxe-lhe a feminilidade de mulher que gosta de estar bela para que o seu companheiro a veja assim, bela. Não se apercebe que lhe basta a sensualidade que lhe permanece no olhar verde-anilado, na cor lhe que pinta a tez.
Os dias passam com beijos trocados, com olhares liquefeitos, com ânsias de mais tempo de mais oportunidade, de sons e desafios nos gestos que trocam. Todos reparam na felicidade lactente, mas não sabem que ela os desafia aos dois, é segredo deles e só deles.
Com o chão a passar debaixo dos pés, ela dá uma gargalhada cristalina num desafio de felicidade que ergue á vida, ao destino, á ironia que a vida lhe trouxe. É na relação inesperada, impossível, que a felicidade lhes acena e pisca o olho esquerdo.