quinta-feira, outubro 27, 2005

Ausente


Estou aborrecida com o Peregrino! Há já quatro dias que anda perdido no tempo e no espaço. Não comunica comigo de forma alguma, não me canta, não me sorri… Por mais que tente chegar a ele, ele afasta-se, para não ter que me afastar.
Inicialmente dei-lhe espaço, mas estou desorientada sem saber se mais algum erro eu cometi.
Esta madrugada desapareceu, juntando-se aos ventos da tempestade que se sentia na escuridão. Ainda tentei chamá-lo, mas já não fui a tempo de me fazer ouvir.
A minha inquietação faz-me andar pela casa, de um lado para o outro, tentando arranjar qualquer coisa com que me ocupar, mas não consigo concentrar-me com actividade alguma. Queria gritar, assim, talvez me ouvisse! Que este não seja o preço que tenho que pagar pelos dois passos, seria muito dispendioso.
Tento o Realizador, mas continua sem me atender, e volto a deixar mensagem.
Perco a paciência e saio de casa na esperança de o encontrar. Caminho pela rua olhando em redor, reparando nas pessoas que passam, com pressa, abrigando-se em baixo dos chapéus-de-chuva, embrulhadas nos seus casacos.
Resolvo entrar no carro e arranco debaixo da tempestade. Oiço a chuva bater no vidro e o barulho do motor do limpa pára-brisas num tac-tac rítmico e interminável.
Vagueio sem destino, absorta nos meus pensamentos, apenas atentando à luz de um ou outro carro que comigo se cruza nas estradas que percorro. Dentro do carro relaxo, a condução dá-me a sensação de alcance, de resolução de algo… é estranho, mas é o que sinto quando conduzo… que vou chegar a algum lado…
Estará ele no meu destino? Essa é mais uma esperança que mantenho acarinhada dentro da minha caixinha, junto das pedras da lua que trouxe da anterior viagem.
Recordo-me: uma noite, num daqueles momentos tão nossos, ele falou-me que eu era uma caminhante da luz, e esta seria a minha demanda, até deixar para trás o meu corpo terreno. Na altura não prestei grande atenção, mas agora, enquanto oiço o tac-tac do limpa pára-brisas ocorrem-me estas conversas, e considero que ele tem uma maior visão de quem eu sou, mesmo antes de mim.
Cheguei a um caminho sem saída. É mais um destino. Paro o carro e desligo os faróis.
O que vejo lá fora corta-me a respiração! A linha da costa desaparece numa profunda ravina mesmo à minha frente, para me mostrar o oceano escuro num intenso frenesim, ribombando como um trovão contra a parede rochosa. A chuva e o vento não acalmaram, antes intensificaram-se no meu imaginário face à encenação que testemunho.
Fico estática sem conseguir sair do meu deslumbramento, mas o tac-tac continua a martelar dentro da minha cabeça, arrebatando os meus pensamentos para o meu Peregrino desaparecido.